A Luz-Clarão de Mabê
POR JULIANO JACOPINI
- Postado por Natali Galvao |
- sexta, 30 de maio de 2025 | 09:34 hs

Marianna Beatriz Ferreira Henrique, a Mabê, faleceu no último dia 27 de maio
Foto: Divulgação
Na modorra das tardes vadias na fazenda, era num sítio lá do bosque que eu escapava aos olhos apreensivos da família; amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso de um botão vermelho; não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor, velando em silêncio e cheios de paciência meu sono adolescente? Que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda? De que adiantavam aqueles gritos, se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? (meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo)
NASSAR, R. - Lavoura Arcaica
A presença da ausência! Este exercício que a morte nos exige soa paradoxal, ainda mais quando sentimos que alguém nos é arrancado descumprindo a lógica do ciclo da vida, quando tem tanto ainda a oferecer como era o caso da Mabê, que em 30 anos, tão jovem, fez muito para Matão, especialmente para a cultura de nossa cidade.
Marianna Beatriz Ferreira Henrique, por todos conhecida como Mabê Henrique, foi artista da cena e ativista cultural. Formou-se em Artes Cênicas na Universidade de São Paulo (ECA-USP), mas foi em Matão, na Terra da Saudade, que consolidou o seu jeito irreverente e experimental de fazer teatro, tendo dado início em 2007, com 13 anos de idade, com o professor Thiago Gardini, estreando nos palcos o espetáculo ‘Avoar’. Desse encontro, foi convidada a se unir com artistas de longa data da cidade, e junto a eles Mabê fundou em 2009 a Cia. Labirinto de Teatro, estreando o espetáculo ‘Valsa nº 6’. Em tempo da fundação da Cia., na cidade de Matão, Mabê participou ativamente da consolidação de dois grandes marcos que são responsáveis pela formação contínua da cultura cidadã da região: o Festival Internacional de Arte-Educação Fronteiras Brasil, que chegou na cidade em 2009 e que deu origem à Casa PIPA - Plataforma Internacional de Produção Artística, em 2010. Muito foi sendo feito na extensa biografia artística de Mabê, mas aqui ainda cabe destaque sua ativa participação conjunta em meu doutorado na Unicamp que consolidou a práxis criativa da Cia. Labirinto – o teatro horizontal – através do monólogo autoficcional a partir da vida de Mabê, intitulado ‘Ame!’, estreado em 2016.
Mabê então, a partir de seus 15 anos de idade, cresceu metade de sua vida emprestando toda a maioria das horas de seus dias para a arte, para a cultura, para a gente, e quando digo a gente, digo da Casa PIPA e tudo que nela acontece – seus projetos, espetáculos, residências, festivais, encontros, festas – porque a Casa PIPA é feita de gente, e por isso hoje nada mais justo do que eternizá-la simbolicamente com o lugar que ela consagrou como sendo palco de suas histórias e as multiplicidades possíveis vindas delas.
Como o tempo que Mabê atuou como servidora pública junto ao Departamento de Cultura, desempenhando papel fundamental em contato direto com artistas da cidade através das Leis de Incentivo Paulo Gustavo e Aldir Blanc e iniciava arduamente o exercício de Gerente do Centro de Educação Complementar, o CEC, que era o seu grande sonho, como outro: o de ser professora de teatro da rede municipal, que seria realizado, pois era concursada em primeiro lugar, mas não em tempo de ter sido convocada, afinal, o tempo não é linear, ela faz com que nos curvemos a ele.
Um dia antes de Mabê ser internada e iniciar a luta pela sua sobrevivência que durou 45 dias, estive no show de Gilberto Gil e uma frase dita por ele reverbera e tilinta em minha cabeça: “O amor é mais difícil que a morte porque é exercício pleno de vida como todos os problemas, todas as contradições, todas as dificuldades. A morte já é depois”. Em sua celebração de despedida que aconteceu na Casa PIPA durante 12 horas – de um arrebol a outro – vimos chegar centenas de pessoas que se uniram a nós, seus familiares, pais, irmãos, amigos-irmãos da Labirinto e tanta gente que a conhecia e que vinha em busca de reverenciar o amor e não a morte, mas o amor no seu mais pleno exercício do encontro com a efemeridade da vida que passa diante dos olhos. Nos encontramos com tantas pessoas através do amor que temos pela Mabê e que rememoraremos para sempre enquanto seu sorriso perdurar na nossa lembrança, e isso certamente nunca se apagará.
Amá-la será uma jornada contínua, um exercício de resistência, escolha e pulso, enquanto a morte foi um fim inevitável como de todos nós um dia será. Mabê sempre foi diversas: alegria num rodopio vermelho girando sem parar nessa roda viva da vida! E é assim que queremos e devemos lembrar dela e vivê-la em nós: com toda energia de amor e loucura que ela nunca se preocupou em equilibrar.
NOTA
Os amigos da Prefeitura de Matão e o prefeito Cido Ferrari manifestam profundo pesar pelo falecimento da servidora Marianna Beatriz Ferreira Henrique, a querida ‘Mabê’.
Mabê exerceu com excelência e dedicação suas funções como Gerente de Suporte a Eventos e Gerente do Centro de Educação Complementar, contribuindo significativamente para o serviço público municipal. Sua atuação sempre foi marcada pelo compromisso, profissionalismo e sensibilidade no desenvolvimento de ações voltadas à comunidade.
Além de sua destacada carreira na administração pública, Mabê também teve importante papel na formação cultural de crianças, jovens e adultos, por meio de sua participação em projetos sociais e culturais vinculados à Casa Pipa, à Associação Cultural e Ambiental para a Cidadania (ONG Ocara) e à Cia Labirinto de Teatro.
Diante da relevância de seus serviços e da marca que deixa em nossa cidade, a Prefeitura de Matão decretou Luto Oficial de três dias, com a bandeira do município hasteada a meia-verga na sede do Paço Municipal, como forma de homenagear sua memória e prestar solidariedade a seus familiares, amigos e colegas de trabalho.
“Todos nós, amigos da Prefeitura, sentimentos demais por esta despedida. A nossa querida Mabê teve uma breve trajetória neste plano, mas intensa em significado. Mais do que uma servidora exemplar, ela foi uma artista de alma generosa, que fez da cultura uma ponte para a transformação humana. Agora, essa estrela tão especial foi brilhar em um palco maior — e certamente levará consigo o mesmo brilho que encantou a todos nós aqui. Uma essência construída pela amizade, sensibilidade, alegria e arte como forma de viver e servir. Obrigado, Mabê! Sua presença será eterna em nossos corações”, prefeito Cido Ferrari.
Fonte: Juliano Jacopini é doutor em Artes da Cena, artista da Cia. Labirinto de Teatro, produtor cultural da Casa Pipa e diretor de Cultura de Matão
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