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ARTIGO: Azarbrás e Cia. ilimitada

POR GUILHERME FRANCO

Guilherme Franco, promotor de Justiça em Campinas (SP), especialista em Dependência Química pela Unifesp e membro da Abead

Poucos anos após a promulgação da Constituição Cidadã de 1988, um pujante Congresso Nacional nos brindava com legislações modernas e elogiadas pelo mundo todo. Cito três: o Estatuto da Criança e do Adolescente; o Código de Defesa do Consumidor - ambos em 1990 - e a Lei de Improbidade Administrativa, de 1992. Essa última, infelizmente, sepultada viva em outubro do ano passado - pelo atual Congresso - com edição da nova ‘Lei da Impunidade Administrativa’, número 14.230/2021.

Essa mesma Constituição deu-nos, logo nos seus primeiros artigos, o alicerce para a construção de um país democrático, sob a proteção do Criador. 

De fato, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, com plena garantia do desenvolvimento nacional, erradicando-se a pobreza e a marginalização, reduzindo-se as desigualdades sociais e regionais, com a promoção do bem de todos, sem qualquer preconceito ou discriminação - mais do que anseio dos brasileiros, é uma ordem inexorável.

Ordem que se dirige, evidentemente, aos representantes que fazem emanar o poder do povo.

Nesse sentido, qualquer tijolo legislativo mal formatado, feito com material impróprio, sem a cura no tempo certo, não poderá mesmo ser colocado no edifício que deverá ser abrigo para as presentes e futuras gerações.

O legislador constitucional foi mais específico. Na cumeeira dessa casa comum foram colocados a criança e o adolescente como prioridade única e absoluta. Há até uma placa identificadora lá no seu cume, bem visível: o artigo 227!

Se fosse a Constituição uma árvore de Natal, o artigo 227 seria a estrela reluzente que se coloca no topo. Vamos olhar para cima e para o futuro! 

Pois bem.

Enquanto quase que a totalidade dos congressistas da primeira legislatura pós-1988 passava de mão e mão tijolos bem ajustados, havia aqueles que, apesar de bem-intencionados, acreditavam que daria para se colocar no edifício alguns remendos ou gambiarras legais. 

Uma dessas gambiarras é Projeto de Lei (PL) 442/1991, objetivando a legalização e exploração dos jogos de azar, dentre os quais, o jogo do bicho, os bingos e os cassinos.

Colocaram, a certa altura, um verniz futebolístico nesse tijolo esfarelado e assim inseriram os bingos dentro das chamadas Lei Zico (1993) e Lei Pelé (1998), cujo desiderato seria somente valorização do desporto.

O verniz durou pouco. Os tijolos, em verdade, haviam sido produzidos na olaria do crime organizado; e milhares de idosos viram suas economias indo ao vermelho na primeira epidemia de dependência de jogos que tivemos em solo nacional. O cenário tornou-se tão devastador que os bingos foram por completo banidos a partir de janeiro de 2002, com a plena vigência da chamada Lei Maguito, editada dois anos antes, em 2000.

Avançamos para o ano de 2016. Os deputados federais de diversos matizes ideológicos se uniram e trocaram de novo a pintura do tijolo dos jogos de azar. Conseguiram, dessarte, aprovar regime de ‘urgência’ - para quem? - na votação do projeto original 442/1991 e criaram um eufemismo: não existem jogos de azar e sim jogos de fortuna. De novo a interrogação. Fortuna para quem?

Chegamos ao final de 2021 com uma nova vitrine denominada para o PL 442/1991: ‘Marco Regulatório dos Jogos do Brasil’ - bingos, jogo de bicho, cassinos e cia..., em ambientes físicos ou virtuais.

E na sequência, com alguns adereços normativos, dentre os quais o intitulado ‘Sistema Nacional de Jogos e Apostas’ (Sinaj) e uma agência reguladora - seria a Azarbrás? - quase às vésperas do Carnaval deste ano, 2022, a Câmara dos Deputados, por maioria apertada, acabou por aprovar a Cassinolândia. O jogo, literalmente, agora está nas mãos do Senado - de quem se espera o mínimo de bom senso para lançar bem longe daqui essa máquina de lavar dinheiro.

Há dezenas de impropriedades. 

Por exemplo: nada se disse propositalmente sobre quem de fato seriam os agentes públicos fiscalizadores do zoológico ou dos demais jogos. Sequer as competências fiscalizatórias foram detalhadas. Seria a Polícia Federal, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), a Caixa Econômica Federal, o Fisco? Só jogando os dados para se saber.

Não para por aí.

Alardeia-se que a Cassinolândia promoverá empregos. Falso! Estudos demonstram que há a canibalização das economias locais com a chegada dos bingos e cassinos-resorts. 

Outro engodo: a jogatina fomentaria a arrecadação tributária. Ora, não por acaso, o PL 442/1991 paradoxalmente faz menção à existência da necessidade de tratamento para jogadores compulsivos - cujos programas terapêuticos - não sabemos quais são eles - receberão somente 4% da arrecadação do tributo que irá se chamar Cide-jogos - cuja alíquota ficou entre 10% e 20% - sobre a receita bruta dos jogos, ‘considerando-se receita bruta a diferença entre os valores apostados e os prêmios pagos’. 

A conta não fecha já na saída. A Epidemiologia ensina que, no caso do tabaco ou do álcool, nunca os ganhos tributários custearão as mazelas do SUS, do INSS, ou da economia como um todo. Não tem como ser diferente com os transtornos causados pelos jogos de azar. 

Nas Las Vegas tupiniquins, abrir-se-á a porteira para um deletério ambiente de aculturação da jogatina para os 5.570 municípios do país - no meio físico ou ‘virtual’. Imagine: pelo menos uma casa de bingo por município... e em cada bingo, além das cartelas, até 400 máquinas de vídeo-bingo. Sem contar os ‘cassinos de bolso’ que estarão nos celulares!

À guisa de risível compensação - para um sem número de famílias destroçadas - haverá uma ínfima percentagem de recursos tributários que serão destinados para tratar a saúde mental dos dependentes que o próprio Sinaj fará surgir entre nós. 

Os jogadores compulsivos, importante se considerar, não raras vezes toram-se drogaditos. E a dependência, seja apenas dos jogos, ou a ‘cruzada’ com a dependência do álcool e outras drogas, fragiliza tanto aos jogadores que pode levá-los ao ato extremo contra a própria vida.

A taxa de suicídio entre pessoas acometidas de transtornos causados por jogos (TG) chega a 15%, segundo recém-publicada nota técnica da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead).

E os cruzeiros/cassinos pelos rios brasileiros - como o Paraná ou o Amazonas - que poderão, quando ancorados, receber jogadores das cidades portuárias? Parêntesis: todo cassino - ou bingo - serão dotados de ‘fumódromos’, um retrocesso inconstitucional à Política Nacional de Controle do Tabaco, afirma-se por oportuno. Barca furada e cancerígena.

Em síntese, em que pese os bem intencionados e incautos favoráveis ao pernicioso jogo de azar: 1) serão cooptados brasileirinhos, cujos cérebros estão em desenvolvimento e carecem de plena proteção, para que logo, logo, tornem-se consumidores/dependentes de jogos e drogas; 2) aposentadorias dos idosos a se evaporar - a tragédia dos bingos já demonstrou a que serviram esses estabelecimentos quando vicejavam entre nós; 3) um tsunami de lavagem de dinheiro do lado de baixo do Equador - com incremento da prostituição, corrupção em todos os níveis, em um exército de CPFs alaranjados.

A sorte, por enquanto, está com o crime organizado, que ainda recebeu um prêmio dobrado dos nobres parlamentares favoráveis ao PL 442/1991: os condenados pela prática de qualquer tipo de jogo de azar serão beneficiados pela ‘abolitio criminis’; afora a certeza de que, ‘anistiados’, seguirão ganhando nos estabelecimentos legalizados ou na exploração da atividade criminosa, ‘sem CPF na nota’.

A clientela cativa para os estabelecimentos clandestinos ganhou até uma sigla: Registro Nacional dos Proibidos (Renapro). São dependentes de jogos – ‘ludopatas’, conforme a escrita pouco técnica do PL 442/1991) - que não poderão frequentar os bingos e cassinos legalizados.

Além do dinheiro que obterão com os crimes de oportunidade para satisfação da dependência - exatamente como ocorre quando um dependente de droga furta ou rouba, em suas vestes maltrapilhas - haverá um exemplar da ‘cartilha de orientação acerca dos sintomas, riscos e tratamento dos transtornos de comportamento associados a distúrbios com jogos e apostas’ (artigo 74, parágrafo segundo, II do referido PL,  publicada pela Política Nacional de Proteção aos Jogadores e Apostadores... quiçá a ‘Ponaproja’. 

É muito azar para um país só.

 


Fonte: Guilherme Franco, promotor de Justiça em Campinas (SP), especialista em Dependência Química pela Unifesp e membro da Abead


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